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» » » » IGREJA | ANÁLISE | A ideologização da identidade católica no Brasil e os parâmetros sociais do Papa Francisco

O uso ideológico do qualificativo de “católico” para promover a desestabilização da ordem e da legalidade, a pretexto de certa preocupação com “oprimidos e minorias”, não tem apoio na sadia doutrina social da Igreja

     -     por PAULO VASCONCELOS JACOBINA da Agência Zenit publicado 04/06/2016
O campo natural para a atuação do leigo no mundo é a política. Não se trata, aqui, de necessidade de engajamento na política partidária, mas na necessidade de empenhar-se diuturnamente na busca do bem comum, com a sociedade. Nestas matérias, exatamente por serem opináveis, há a liberdade do cristão católico para a atuação dentro dos critérios de fé e moral que a Igreja oferece como guia.
No magistério recente do Papa Francisco, ele nos presenteou com quatro parâmetros para ver, julgar e agir na busca da paz social e do bem comum, como leigos e filhos da Igreja militante. Na obediência da fé, é muito interessante saber se as posições adotadas pelos leigos católicos podem ser medidas não somente pelos critérios tradicionais da Doutrina Social da Igreja, tais como o bem comum, a destinação universal dos bens, a participação, ajustiça, a solidariedade e a subsidiariedade, mas pelos quatro novos parâmetros que o Papa aponta na encíclica Evangelii Gaudium (§§ 217 e seguintes) e volta a usar, de forma prática, na exortaçãoAmoris Laetitia (logo no seu início, § 3º). São eles:
1. O tempo é superior ao espaço.
2. A unidade prevalece sobre o conflito.
3. A realidade é mais importante que a ideia.
4. O todo é superior à parte.
Assim, diante do conteúdo de certas manifestações que são difundidas por pessoas que se apresentam como católicas, e até como leigos católicos representantes do laicato, e que são posições radicais e extremamente parciais no momento político tão delicado que vive o nosso país, usar os princípios da Doutrina Social da Igreja e os parâmetros ensinados pelo Papa Francisco pode ser um bom critério para distinguir as opiniões sólidas, boas e responsáveis daquelas outras que não somente não representam o pensamento dos leigos em geral, como destoam dos próprios princípios que a Igreja ensina como critérios para o pensamento católico.
O discurso de que algum grupo tem o monopólio dos “avanços sociais”.
Um dos discursos que vem sendo repetido afirma que está em curso, por parte do governo interino do país, uma espécie de movimento de “retrocesso ou extinção” de “conquistas sociais” essenciais para o povo brasileiro, em especial contra os pobres, negros, jovens, indígenas, mulheres, homoafetivos, dentre outros. E isso por deliberada maldade dos membros do governo interino, que estaria impondo um programa que não conta com a legitimidade do voto, e que tais “avanços” estariam sendo usurpados pelo crescimento do pensamento ultraconservador, tanto em nível nacional, quanto mundial, referendado pela adoção de práticas enraizadas por fundamentalismo religioso. E tacha-se de neoliberal o lado oposto.
Haá quem, declarando-se católico, denuncie uma certa ameaça à democracia do nosso paísque decorreria mesmo sob argumento da legalidade e do respeito à ordem vigente. Essa ameaça revelaria, afinal, um certo plano para a tomada do poder no Brasil, e até em outros países, por parte de uma desta elite dominante neoliberal.
Que dizer? Quando alguém que se diz denuncia que a soberania brasileira está ameaçada por uma “elite dominante” que, fundamentada na “legalidade e no respeito à ordem vigente”, quer suprimir “direitos” sem estar fundamentada em votos, faz uma leitura da realidade que desconsidera os parâmetros ensinados pelo Papa Francisco. E desconsidera não apenas um, mas todos os parâmetros.
O todo é superior à parte.
Em primeiro lugar, há a questão do respeito à legalidade e à ordem pública. Não há como denunciar que a soberania está sendo ameaçada através do respeito à legalidade e à ordem pública sem cometer uma contradição. Excluir da cidadania uma parte da sociedade, que chamam de “elite dominante”. Segundo se diz em meios que se declaram “sociais e politizados”, esta elite dominante é, em si mesma, uma ameaça à soberania quando age, mesmo que sob o fundamento da ordem pública e da legalidade. Então, denunciam certos “católicos sociais”, qualquer atuação dos pretensos membros de tal “elite neoliberal” é uma ofensa à soberania, mesmo que respeite a legalidade e a ordem pública.
Por isto, poder-se-ia concluir que os que pensam assim reputam como ofensores da soberania os membros do atual governo interino, por presunção total e inafastável.
Pode-se concluir que, se o Papa ensina que o todo é superior à parte, nenhum católico pode defender validamente que uma parteda sociedade deve monopolizar a soberania, mesmo a pretexto de representar os pobres, negros, jovens, indígenas, mulheres, homoafetivos e outras “minorias”. A soberania brasileira é atributo do todo, que é o conjunto da sociedade, incluídos aí progressistas, conservadores, liberais ou marxistas.
St. Peters Baldachin by Bernini
Deixar de reconhecer que, a título de implementar “conquistas sociais”, o governo afastado consolidou um grande esquema de corrupção que produziu um deficit de bilhões de dólares, protagonizou o maior número de réus presos por corrupção de qualquer democracia do mundo e causou uma recessão que se estende por anos, com a redução ao desemprego e à miséria de milhões de brasileiros, sob o pretexto de que houve “avanços” nos direitos de certas minorias é também deixar de reconhecer a primazia dotodo sobre aparte.
A unidade prevalece sobre o conflito.
Quem pensa e expressa-se assim vulnera também o parâmetro da superioridade daunidade sobre o conflito. Ao presumir que os grupos conflituosos jamais podem ser reconduzidos à unidade, porque os discordantes seriam apenas “usurpadores ultraconservadores e neoliberais” dos “avanços de minorias”, tal pensamento entrona oconflito como superior à unidade.
A realidade é mais importante que a ideia.
É fato, por outro lado, que os membros do governo ora apeado do poder por força do processo de impeachment foram os únicos responsáveis pela escolha da chapa que foi eleita, em 2014, para governar o país, e que era composta de candidatos a presidentee a vice. A fotografia dos dois apareceu nas urnas eletrônicas, e a candidatura conjunta foi devidamente registrada nos tribunais eleitorais do país. A Constituição do Brasil deixava bem clara, então como agora, a responsabilidade do vice para conduzir o governo no caso de impedimento do titular, e foi nesta qualidade que a chapa foi submetida às urnas. Esta é a realidade. Mas alguns, apresentando-se como católicos, colocam a sua ideologia acima da realidade, negando legitimidade eleitoral a quem foi submetido a voto popular por escolha em conjunto com a titular agora impedida. Ou seja, recusam-se a reconhecer que a realidade é superior à ideia. Ferem, portanto, outro princípio do Papa Francisco para o discernimento do bem comum e da paz social.
O tempo é superior ao espaço.
Há miseráveis e desempregados de todas as minorias, e das maiorias também. A corrupção e a incompetência administrativa não foi seletiva em nosso país. A mentalidade de que alguém pode alegar-se como “defensor e pai dos pobres e excluídos” para ter carta branca para conduzir como quiser o país, e que “espaços” das minorias serão perdidos quando alguém que não é do seu grupo político assume o governo por força de procedimento constitucionalmente previsto e com respeito à chapa expressamente eleita, deixa de obedecer à diretriz papal de que o “tempo” é superior ao “espaço”, e de que é necessário dar tempo para que a ordem seja restabelecida quando os espaços de poder foram tão claramente manipulados sob falsos pretextos.
Preocupa-me muito quando setores sociais, alegando-se católicos, começam a denunciar que o respeito à ordem vigente e a legalidade são atitudes ilegítimas do ponto de vista da ameaça à soberania e do interesse de grupos organizados, que se dizem monopolizadores de “avanços sociais” ou de “minorias oprimidas”. Isto traz implícita a ideia de que um golpecontra tudo o que está aí – a legalidade, a ordem vigente, ao governo, ao legislativo, ao judiciário – por parte dos membros dessas supostas “minorias excluídas” seria, na verdade, um resgate de soberania. Inversão total. Ou seja, para quem repete isto por aí, somente o rompimento institucional traria de volta a legitimidade. Isto não se justifica perante a doutrina social da Igreja, e portanto não pode ser defendido, de boa fé, sob o rótulo de “pensamento cristão”.

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