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» » Financiamento coletivo viabiliza ideias com cumplicidade

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O boom desse tipo de finan­ciamento coletivo, conhecido como ­crowdfunding, se deu nos Estados Unidos, com o ­Kickstarter, em 2009

E promove a democratização da produção, a distribuição de bens culturais e o fortalecimento do jornalismo independente
por Xandra Stefanel publicado 15/12/2013 10:56, última modificação 16/12/2013 00:29
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MÃOZINHA
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Caio Cílnio Mecenas foi um influente conselheiro do imperador romano Augusto, nos anos 60 – antes de Cristo. Rico e integrante de um círculo de amizades composto de muitos artistas e intelectuais, ele começou a financiar poetas e pintores. O gesto rende ao termo “mecenato” uma longevidade de mais de 2 mil anos sem perder o sentido­ de designar atividade de incen­tivo, financia­mento ou patrocínio de artis­tas. Claro que, hoje em dia, muitos endinheirados preferem empregar recursos em troca de incentivos fiscais, o que tem feito escassear­ os bons padrinhos, em detrimento de chover grandes ideias.
De uns anos para cá, os próprios por­ta­dores dessas grandes ideias, na falta dos tradicionais mecenas, têm recor­rido a plataformas de financiamento cole­tivo, formadas por pessoas que se reú­nem e doam pequenas quantias para pôr projetos de pé. Trata-se da boa e velha vaquinha,­ que levou à criação de firmas especializadas em organizá-las pela internet. O boom desse tipo de finan­ciamento coletivo, conhecido como ­crowdfunding, se deu nos Estados Unidos, com o ­Kickstarter, em 2009. Um dos maiores sites do gênero até hoje, a empresa­ recebe projetos de todas as áreas, inclusive voltados apenas ao consumo. Até meados de outubro passado, 5 milhões de pessoas já tinham doado US$ 825 milhões para cerca de 50 mil projetos.
No Brasil, alguns sites movimentam um volume crescente de dinheiro e começam a colecionar “apoiadores de carteirinha”. O maior deles, o Catarse, lançado em 2011, atingiu R$ 10 milhões em doações no início deste segundo semestre. No primeiro ano, 14.992 pessoas apoiaram pelo menos um projeto no Catarse com doações de, em média, R$ 105. Em 2012, esses números saltaram para 37.264 pessoas com contribuição per capita de R$ 107. Este ano, quase 40 mil participaram, com uma quantia média de R$ 113 por doação.
A regra é simples: o realizador formata um projeto plausível, manda para o site de financiamento coletivo de sua escolha, a equipe do site faz uma seleção das propostas realizáveis e dá dicas para aumentar as chances de sucesso. Com o projeto no ar, é hora de executar o planejamento da campanha e espalhar na rede para engajar o máximo de pessoas. Geralmente, o realizador precisa explicar tintim por tintim para que quer o dinheiro, como vai usá-lo e os prêmios que os colaboradores vão ganhar caso a iniciativa seja financiada (ingressos, adesivos, livros etc.). Se isso não acontecer, todo o dinheiro volta para os doadores.
Em geral, os sites dão prazo para que os projetos fiquem no ar e não costumam cobrar nada para publicá-lo. O que fazem é ficar com um percentual (que varia de um site para outro) do valor arrecadado quando a ação é bem-sucedida. O Catarse cobra uma taxa fixa de 13% do total arrecadado. O site Benfeitoria não cobra taxa; recebe ele próprio doações dos usuários e promove outras ações que garantem a sustentabilidade da empresa.

Democracia e liberdade

Apesar de o Catarse não ser uma plataforma de financiamento coletivo apenas de projetos culturais, as três maiores categorias em números de projetos e dinheiro arrecadado são música, cinema e vídeo e comunidade. Segundo o coorde­nador de comunicação, Felipe Caruso, dos 1.200 projetos culturais que passaram pelo Catarse, 650 foram contemplados com financiamento. “Os meios tradicionais ficaram muito viciados nas grandes emprei­tadas, voltados aos grandes artistas, no caso da cultura, porque para as grandes empresas eles trazem um melhor retorno. No financiamento coletivo não há essa questão do retorno”, afirma.
Esse modelo de arrecadação também prioriza a liberdade do idealizador para desenvolver seu projeto. “Às vezes ele ­opta por ter maior independência, e por isso financia o projeto diretamente com os fãs, porque assim recebe chancela para fazer o que quiser, independentemente de gravadora, editora etc.” A origem dos recursos também é bem distri­buída: o Catarse catalogou apoios vindos de cerca­ de 2 mil municípios. “Já chegamos a todos os estados brasileiros. É legal porque independe de onde você está para financiar sua ideia. Você pode estar em Quixeramobim e receber apoio de pessoas que estão no Oiapoque ou fora do Brasil”, completa Caruso.
A Agência Pública, de jornalismo investigativo, acaba de distribuir bolsas para a produção de reportagens independentes com parte dos recursos obtidos por meio do Catarse.
A campanha começou em 9 de agosto em busca de R$ 47.500. Em menos de dois meses arrecadou R$ 59 mil. Entre 7 e 20 de outubro, 48 propostas de reportagens foram submetidas aos participantes da vaquinha, que elegeram 12 para receber a bolsa. Parte dos doadores poderia, ainda, integrar o conselho editorial. A cada­ real arrecadado no Catarse, a empresa de investimento filantrópico ­Omidyar Network doaria outro real, numa ação conhe­cida como match funding.
Para a jornalista Marina Amaral, diretora da agência, o sucesso da campanha mostra que o público está mudando a maneira de enxergar o jornalismo. “Fiquei surpresa de ver que as pes­soas passaram da fase de só ficar falando mal da imprensa e da mídia tradicional. Perceberam as inconsistências da comunicação na internet e valorizaram uma agência profissional de jornalistas desvinculada de interesse político-econômico.” O financiamento, segundo ela, serve para medir o interesse: “Nós acrescentamos a isso tudo a participação do público, que poderia financiar dizendo ‘eu quero este projeto de jornalismo’. Uma coisa é ‘curtir’, a outra é depositar R$ 20 e preencher um formulário. O público escolhe as pautas, decide o que é mais importante investigar. E o quesito independência é contemplado”.

Fazer parte

Uma das 808 pessoas que doaram para o projeto Reportagem Pública, Vanessa Aguiar, de Florianópolis, contribui com ideias bancadas dessa forma há mais de três anos. Também jornalista, ela sentiu-se estimulada pela seriedade. “Doei, compartilhei e incentivei pes­soas que eu conhecia a doar também. Esse tipo de financiamento é o mais genuíno para o jornalismo continuar existindo. É independente na forma mais pura”, avalia Vanessa, que também doou para o projeto sobre mobilidade urbana Cidade para as Pessoas, que teve duas edições, ambas financiadas com sucesso no Catarse.
Em ambas, a jornalista e ciclista ­Natália Garcia viajou por um ano para vários países em busca de boas práticas e ideias que tenham melhorado a vida de seus moradores. O resultado virou reportagens e foi tema de palestras que a realizadora fez pelo Brasil.
Natália acionou a rede de cicloativistas, ambientalistas, arquitetos e viabilizou seus projetos. Essa é uma das regras importantes do jogo: é preciso que haja entre o ­doador e o projeto uma identificação, seja com a causa, seja com o realizador. Vale tudo: convidar família, amigos, apresentar a ideia em grupos temáticos na rede social. O que importa é espalhar o projeto.
No início de 2013, a publicitária ­Renata Zanotto, de 33 anos, soube que estava no ar um projeto de financiamento do evento Baixo Centro, uma festa colaborativa e autogestionada cuja proposta é ocupar o centro da capital paulista com arte. Dos R$ 72.750 arrecadados, R$ 20 eram de Renata. “Colaborei porque acreditei na ideia de um festival democrático e divertido. É gratificante você comparecer depois e achar que, mesmo sendo com um pouquinho, você fez parte e ajudou a fazer aquilo acontecer.”
Também foi por meio do Catarse que a artista plástica paulistana Estela Miazzi realizou o sonho de lançar seu primeiro livro, com histórias e confissões anônimas de mulheres de 16 a 70 anos. Recorreu ao site em busca de R$ 15 mil. Seu livro Maria foi publicado pela Prólogo Editorial há pouco mais de um ano.
“Eu tinha dinheiro guardado, só que não ia dar para fazer tudo. Para a grá­fica, que é o mais caro, eu já tinha quitado a parcela principal. O projeto como um ­todo não se pagou, mas o importante é que coloquei no mundo um projeto querido do qual sou realizadora. Acho que é disso que o mundo precisa. A gente vai lá e pede ajuda. E, da mesma forma que pedi, eu já investi em outros projetos,” afirma Estela.
A Benfeitoria, site lançado em 2011, é “uma fábrica de experimentos colaborativos”, segundo Dorly Neto, relações-públicas da empresa. O foco da página são ações que causem impactos positivos na sociedade. “Encontramos a possibilidade de ajudar pessoas que querem fazer cultura principalmente em territórios nos quais conseguir orçamento é muito difícil, como em periferias e favelas. É legal ver que os artistas estão se apoderando da liberdade de criação através do financiamento coletivo.” A Benfeitoria tem um acervo de 95 projetos, dos quais 60 foram financiados por 10 mil doadores e angariaram R$ 1 milhão.
O documentário O Renascimento do Parto, sobre a realidade obsté­­trica no Brasil, foi um dos projetos finan­ciados coletivamente na Benfeitoria. Os recursos dos realizadores, o diretor Eduardo Chauvet e sua mulher, a produtora ­Érica de Paula Cavalcante, não seriam suficientes para a distri­buição nos cinemas.
A primeira meta do casal, R$ 65 mil, pagaria distribuição, divulgação, eventos de lançamento e algumas adaptações técnicas. A segunda, de R$ 110 mil, caso fosse atingida, arcaria com gastos durante a produção, como passagens de avião, alimentação da equipe, tratamento de som.
“Tiramos R$ 45 mil do bolso e pensamos que se esse dinheiro voltasse seria incrível”, diz Chauvet. E não é que voltou?­ Em três dias eles atingiram a pri­meira meta e em sete bateram os R$ 110 mil. Segundo Dorly Neto, o documentário foi um recorde. “Nenhum projeto no Brasil tinha arrecadado R$ 65 mil em três dias. Eles conseguiram isso porque a rede que essa temática de parto humanizado agrupa é muito engajada.”
Eduardo conta que até tentaram buscar­ patrocínio da iniciativa privada. “Eles declin­avam porque é um filme que denuncia um esquema, uma indústria, que vai contra corporações, o corporativismo médico, a máfia da indústria do nascimento... Quem vai querer se associar a um filme desse?” Graças ao financiamento coletivo, O Renascimento do Parto foi exibido em cerca de 40 cidades brasileiras sem interferência externa. “A grande­ vantagem do cinema independente é você­ poder entregar a obra sem corte, sem ninguém estar ali para dar uma manipulada. O que a gente quis colocar, colocou. Agora o filme está no mundo”, comemora o diretor.

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Possível e saudável

“Essa é a tendência do futuro, um modelo subversivo, porque a gente reverte a situação de ter de depender dos sistemas patronais de financiamento”, afirma Alex Cecci, produtor de eventos, diretor artístico e um dos criadores do Ativa Aí!, site que tem o objetivo de facilitar a realização de shows, peças e outras produções culturais. 
“Não é mais preciso depender das grandes instituições. É um modelo que muda o jeito de consumir um monte de coisas, não só arte. É anárquico e dá o poder para o povo”. A plataforma, segundo ele, possibilitou a realização de nove espetáculos em dois anos. Para Cecci, os números relativos ao ­crowdfunding no Brasil ainda são tímidos, mas sites como Ativa Aí!, Benfeitoria, Catarse, Queremos!, entre outros, estão promovendo a pedagogia do financiamento coletivo.
“Estamos vivendo um momento de aculturamento do crowdfunding porque pouca gente sabe o que ele significa. Partimos do princípio de que a pessoa tem de saber o que é, tem de estar habituada com as redes sociais, conhecer o modelo, se familiarizar”, observa o produtor, lembrando que o apoiador ainda precisa se sentir à vontade para participar de uma ação de crowdfunding, para comprar com cartão de crédito na internet e ainda acreditar que, se o evento não acontecer, vai receber o dinheiro de volta. “Ainda vivemos um momento em que o financiamento coletivo é uma incógnita, mas daqui a cinco anos vai se tornar o modelo alternativo que vai tomar conta do mercado”, aposta.
A consultora Marina Miranda, especialista em crowdsourcing – modalidade de criação com participação voluntária, a partir do compartilhamento de conhecimento e experiências coletivas –, concorda. “Existe toda uma mudança por trás disso que não é apenas a ponta do financiamento por meio da multidão. Existe o contexto da mudança do trabalho, do anseio das pessoas de fazer, cada vez mais, as coisas que querem, a questão do empreendedorismo é cada vez mais forte no mundo inteiro... Tudo isso fomenta as pessoas a criar projetos”, diz. Para ela, a partir do momento em que o brasileiro perceber que é capaz, o número de projetos e o volume de dinheiro movimentado dessa forma no país vão crescer. “O brasileiro tem baixa autoconfiança. A partir do momento em que alguém vê que o vizinho fez um projeto no Catarse, por exemplo, ele também vai começar a fazer”, acredita.
A mudança já está acontecendo e vem promovendo uma gradativa descentralização na produção e distribuição de bens culturais. Dorly, da Benfeitoria, aposta nessa evolução. “Eu acho que nos próximos anos isso será uma possibilidade real e plausível, a ponto de incomodar quem continuar a fazer as coisas de forma tradicional. Hoje ainda não incomoda.” O que está em jogo nesse tipo de financiamento é o poder de escolha do público. “É um novo tipo de mecenato, não aquele tradicional. É muito mais simples e distribuído. Quando você dilui o conceito de mecenas entre várias pessoas e o coloca no âmbito colaborativo, é muito mais poderoso”, diz.
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Interesse do público

Com a ausência de regulamentação do sistema de comunicação brasileiro – a esperada Lei de Meios –, falta também uma política de Estado que regule as verbas da publicidade oficial. Assim, governos de plantão definem para onde vão recursos da propaganda pública e das estatais – em cidades, estados e na União. Atualmente, essa publicidade – a exemplo dos grandes anunciantes privados – continua concentrada nos maiores veículos comerciais, privilegiando a TV. E o potencial da internet é negligenciado, sobretudo o jornalismo independente.
Assim, uma parte da blogosfera que se tornou referência na produção de contrapontos à indústria tradicional da informação também passou a convocar o público para ajudar a bancar a reportagem alternativa. Tem desde um tradicional “Contribua para uma blogosfera livre, ajude a manter o Maria Frô”, da jornalista Conceição Oliveira, até a abertura de 20% do capital social do blog de análise política O Cafezinho. Seu gestor, o jornalista Miguel do Rosário, dividiu esses 20% em 1 milhão de títulos, que os leitores podem comprar a ­R$ 10. O repórter Rodrigo Vianna também pôs um pedido em seu site: “Mantenha o Escrevinhador no ar. Clique no botão abaixo para fazer sua doação”. O Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé convida o leitor a se associar à entidade para contribuir com a luta pela democratização dos meios de comunicação.
Jornal Pessoal, que Lúcio Flávio Pinto faz sozinho desde 1987, não aceita publicidade privada nem pública. Ele também aderiu à “vaquinha” ao lançar o JP na internet, pedindo aos leitores doações para mantê-lo no ar “com a mesma independência da versão impressa”. Idem para o Viomundo: “Não aceitamos recursos de governos. Não queremos depender de corporações”. Assim como o projeto Reportagem Pública no Catarse, o site de Luiz Carlos Azenha faz uma campanha de autofinanciamento. Os visitantes são convidados a se tornar assinantes, com R$ 9,90 ao mês para o site – que continua com conteúdo aberto – ou doar a partir de R$ 25 para financiar projetos de reportagem.
O conceito é similar ao do crowdfunding: desenvolver no público o hábito de apoiar a execução de boas ideias. Um modelo de consumo consciente e solidário de um bem imaterial da sociedade: a informação.

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